Disciplina - Biologia

Biologia & Ciências

01/02/2017

Simbiose perfeita

Algas já viviam em simbiose com corais há 210 milhões de anos e são bem mais antigas e diversas do que se pensava

Por André Julião

Os recifes de coral são conhecidos pela grande variedade de espécies que vivem ao seu redor. Ancorados no leito marinho, onde constroem enormes colônias, os corais, animais parentes das medusas, estão normalmente cercados por algas e peixes coloridos, além de incontáveis microrganismos, formando grandes ecossistemas. Para a maior parte dos corais de água rasa, no entanto, nenhum outro ser vivo é mais importante do que as zooxantelas, um grupo de algas microscópicas que vivem dentro deles e funcionam como verdadeiros órgãos. Ao reciclarem substâncias excretadas pelos corais como a amônia e liberarem alimento em forma de açúcares, as zooxantelas não só garantem a própria sobrevivência como a de seus hospedeiros, que não têm recursos para realizar esses processos fisiológicos. Dois trabalhos mostram que essa associação data de pelo menos 210 milhões de anos e que as algas simbióticas são ainda mais antigas do que isso – e sua diversidade é muito maior.

Ao comparar corais atuais do Brasil com fósseis que viveram no mar de Tétis, oceano que existiu quando os continentes formavam um só bloco, a Pangeia, um grupo de pesquisadores da Polônia, da Suíça, dos Estados Unidos e do Brasil conseguiu demonstrar que essa relação já existia no período Triássico, 210 milhões de anos atrás, quando surgiram os dinossauros. A simbiose, dizem os pesquisadores, garantiu que os corais se tornassem aptos a sobreviver em um período em que a água do mar de Tétis era pobre em nutrientes. “Essas algas precisam basicamente de luz e dióxido de carbono, pois fazem a fotossíntese e geram o próprio alimento. Nesse processo, reciclam substâncias danosas aos corais e ainda proveem açúcares e lipídios”, explica o oceanógrafo Marcelo Kitahara, professor do Departamento de Ciências do Mar da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), colaborador do Centro de Biologia Marinha da Universidade de São Paulo (CEBIMar-USP) e um dos autores do artigo publicado em novembro na Science Advances.

Corais do passado

Não dá para saber quais algas viveram nos corais em tempos remotos, mas é possível inferir sua presença pela assinatura deixada por uma combinação de elementos químicos depositados quando os corais ainda eram vivos há mais de 200 milhões de anos. São diferentes tipos (isótopos) de carbono, oxigênio e nitrogênio detectados graças ao ótimo estado de preservação de fósseis coletados na província de Antália, na Turquia, em uma região montanhosa onde antes havia o mar de Tétis. “Por sorte, as rochas ficaram bem isoladas da água, que normalmente penetra nelas”, diz o geólogo Jaroslaw Stolarski, da Academia Polonesa de Ciências, em Varsóvia, um dos autores do artigo da Science Advances. A água contribui com a diagênese da rocha, que nesse caso é a transformação da aragonita, mineral rico em informações do fóssil, em calcita, do qual os especialistas aproveitam pouco ou nada. “Se quisermos extrair informação original do esqueleto do coral, ele tem de estar bem preservado. A presença de aragonita é uma prova dessa preservação por conter todas as assinaturas de isótopo originais”, explica.

Os pesquisadores então compararam os isótopos encontrados nos fósseis com os presentes em corais simbióticos e assimbióticos atuais na ilha dos Búzios, no arquipélago de Ilhabela, em São Paulo. “Para fazer essa comparação, além de fósseis bem preservados era preciso ter corais atuais, vivos, sob as mesmas condições de luminosidade e temperatura da água, disponibilidade de alimento, entre outros”, diz Kitahara. Depois de muita procura, o grupo encontrou nas águas paulistas uma comunidade bastante diversa vivendo em um espaço de meros 5 metros quadrados (m2). Só assim se diminuiria ao mínimo a probabilidade de outros fatores influenciarem a presença de certos isótopos.

As análises mostraram que tanto os fósseis quanto os corais simbióticos atuais possuem os mesmos tipos de carbono, nitrogênio e oxigênio. A diferença é marcante em relação aos corais modernos que não realizam simbiose, e não têm os mesmos isótopos. O porquê da presença deles nos corais simbióticos não é totalmente claro, mas sabe-se, por exemplo, que um tipo de nitrogênio presente nos corais simbióticos deriva da amônia excretada pelo coral e absorvida pelas zooxantelas.

Outra análise que reforça os resultados é a da microestrutura de crescimento dos corais. Os pesquisadores partiram da premissa de que os corais simbióticos do passado cresciam da mesma forma que os que vivem hoje em associação com microrganismos: com regularidade constante, pois seu metabolismo está atrelado ao das algas que vivem em seu interior e dependem da luz do Sol para fazer a fotossíntese. “As microestruturas registram o ritmo fisiológico dos corais. Os simbióticos geralmente seguem o ritmo das algas, enquanto os assimbióticos não seguem os períodos de presença ou ausência de luz solar”, explica Stolarski. Por isso, os corais sem simbiose têm um padrão irregular de crescimento, enquanto os simbióticos são bastante regulares, seguindo períodos de dia e noite.

Algas do presente

As algas que vivem dentro dos corais, no entanto, já existiam bem antes deles. Um mapeamento genético do microbioma existente atualmente no esqueleto de corais simbióticos da Grande Barreira de Corais da Austrália, maior formação desse tipo no mundo, rastreou a existência de algumas linhagens de algas ainda no período Ordoviciano, cerca de 500 milhões de anos atrás. “Além de mais antigas, agora descobrimos que elas são muito mais diversas do que se pensava”, explica a bióloga brasileira Vanessa Rossetto Marcelino, atualmente concluindo o doutorado na Universidade de Melbourne, na Austrália, e autora de artigo publicado em agosto na Scientific Reports em coautoria com seu orientador, o biólogo Heroen Verbruggen. Vanessa analisou DNA retirado de amostras de esqueleto de corais vivos e encontrou mais de uma centena do que podem ser novas espécies de algas ou mesmo linhagens inteiras.

Enquanto os corais são visíveis a olho nu e já foram bastante estudados, pouco se sabe sobre as algas. A razão para essa compreensão ainda incipiente é a dificuldade de identificar a diferença entre as espécies de algas, tanto com microscópio quanto por meio de sequenciamento genético. “O formato delas é sempre o mesmo e os marcadores moleculares existentes têm baixa resolução, ou seja, não dão conta de caracterizar uma grande parte da biodiversidade”, explica Vanessa.

Por isso, ela e Verbruggen usaram uma combinação de quatro marcadores para analisar o DNA retirado de 132 amostras de esqueletos de coral. Esse esforço permitiu identificar uma gama de organismos, muitos nunca antes encontrados em corais. Além das algas, grupo que compõe a maior parte desse microbioma, foram detectados ainda alguns fungos e bactérias. Enquanto a literatura científica dava conta de algumas poucas espécies habitantes de corais, os pesquisadores da Austrália encontraram mais de 120, incluindo famílias inteiras ainda não descritas. A diversidade encontrada sugere ainda que algumas linhagens são até mais antigas do que os próprios corais e já existiam 250 milhões de anos antes de começarem a habitar esses organismos. Análises de fósseis já haviam mostrado evidências da presença desses seres em conchas e estromatoporoides, esponjas do mar que viveram cerca de 500 milhões de anos atrás. “Os corais foram invadidos por mais de 20 linhagens diferentes de algas em momentos distintos da evolução delas”, diz Vanessa.

O gênero Ostreobium de algas, que até então acreditava-se ter três espécies, mostrou-se na verdade uma linhagem com mais de 80 unidades taxonômicas, um nível próximo ao de espécie na classificação. Em seus 500 milhões de anos de existência, elas sobreviveram inclusive à grande extinção do período Permiano, aproximadamente 300 milhões de anos atrás, quando cerca de 90% das espécies marinhas e 70% das terrestres desapareceram da Terra. Logo depois, no Triássico, elas se diversificaram, justamente quando surgem os corais com simbiose. A descoberta, além de indicar a eficiência do uso de múltiplos marcadores para estudar os microbiomas dentro de corais, abre caminho para investigações mais específicas acerca dos seres que habitam os esqueletos de coral e do seu papel na vida destes.

O grupo de pesquisadores do qual Vanessa faz parte na Austrália já está aplicando a metodologia de sequenciamento com múltiplos marcadores para estudar se diferentes espécies de coral estão associadas com linhagens específicas de algas. Além disso, querem saber como a associação entre esses organismos muda em função de condições ecológicas e das espécies envolvidas. “Nós abrimos um livro, agora é possível estudar as páginas dele”, conclui Vanessa.

Esta notícia foi publicada na Edição 251 de janeiro de 2017 da revista Pesquisa FAPESP. Todas as informações nela contida são de responsabilidade do autor.
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