Disciplina - Biologia

Biologia & Ciências

05/07/2018

Trocando as defesas do organismo

Transplante de medula óssea é a melhor alternativa de longo prazo para a Ipex, doença autoimune infantil rara


O estudo de doenças raras depende, às vezes, de grandes colaborações internacionais para obter um quadro mais completo ou a melhor abordagem terapêutica de uma condição clínica que acomete um número reduzido de pacientes. Esse foi o espírito que norteou o trabalho de uma equipe de 83 pesquisadores de 38 centros médicos de 18 países, incluindo o Brasil. O time de especialistas confrontou os resultados de duas abordagens utilizadas no tratamento de uma enfermidade autoimune incomum e grave que se manifesta em recém-nascidos apenas do sexo masculino e é conhecida pela sigla Ipex. Em razão de um defeito genético, as células de defesa dessas crianças atacam descontroladamente vários órgãos de seu próprio organismo.

A primeira abordagem, o chamado transplante de células-tronco hematopoiéticas (de medula óssea ou de cordão umbilical), procura dotar a criança de novo sistema imunológico, com células sadias que não manifestem a doença ou a apresentem em menor grau. A segunda, baseada no emprego de medicamentos imunossupressores, tenta diminuir a ação das células de defesa, que, no caso da Ipex, em vez de protegerem o organismo contra ameaças externas, se voltam contra ele. Com base em 96 casos tratados de 2000 a 2016 nos países participantes do estudo, a equipe constatou que o índice de sucesso das duas terapias foi semelhante, embora ligeiramente maior no caso dos transplantes. Em cerca de dois terços dos pacientes, os tratamentos melhoraram a qualidade de vida dos doentes, segundo artigo publicado em março de 2018 na revista científica Journal of Allergy and Clinical Immunology.

No entanto, o perfil dos pacientes que mais se beneficiaram com a adoção de cada estratégia foi diferente. A análise retrospectiva dos casos – 58 tratados com células-tronco e 34 com drogas imunossupressoras – indicou que o transplante se mostrou a melhor estratégia de longo prazo para recém-nascidos ou crianças ainda sem danos em seus órgãos causados pela Ipex. “O transplante é muito mais caro do que a terapia com imunossupressores. Pode custar de R$ 200 mil a R$ 500 mil e requer dois a quatro meses de internação”, comenta a pediatra Juliana Fernandes, do Instituto da Criança do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FM-USP), que participou do estudo. “Mas, quando ele dá certo, os pacientes, depois de dois anos, não precisam mais tomar remédios nem ser internados. Já quem faz apenas o tratamento imunossupressor provavelmente terá de ser hospitalizado novamente.”

Por isso, o emprego da estratégia medicamentosa, que deixa o paciente mais exposto a pegar infecções, é aconselhado apenas em pacientes que já apresentam comprometimento de algum órgão (nesses casos, a adoção do transplante produziu resultados ruins, segundo o estudo) ou como alternativa para deter a progressão da doença antes do transplante. A universidade paulista participou do estudo com cinco casos de crianças com Ipex tratadas desde 2008. Três das cinco crianças passaram por transplante de células-tronco extraídas da medula dos pais ou, como alternativa, de cordão umbilical. Os transplantes foram pagos pelo Sistema Único de Saúde (SUS).

Às vezes, é necessário repetir o tratamento para dar certo. “Em 2009, um menino de 2 anos e 6 quilos tinha diabetes, hepatite, anemia e danos nos rins em razão da Ipex”, relata Juliana. O primeiro transplante não trouxe os resultados desejados, mas o segundo, seis meses depois, foi eficaz. Dos problemas iniciais, restou apenas o diabetes no garoto, hoje com 13 anos. Seu irmão gêmeo, que nasceu com a mesma doença, apresentava um estado menos grave, mas morreu por causa de uma infecção severa antes de se submeter ao procedimento. O menino que sobreviveu tem um segundo irmão, de 6 anos, que também nasceu com a Ipex e igualmente passou por dois transplantes de células da medula, o segundo foi bem-sucedido. Eles estão bem e são acompanhados pelas equipes da USP em consultas anuais.

Por ser rara, complexa e fatal, a Ipex – sigla de síndrome da imunodesregulação, poliendocrinopatia e enteropatia ligada ao cromossomo X – sempre gerou incertezas entre os médicos. “Não existem diretrizes gerais e o tratamento depende da experiência de cada centro médico”, diz a pediatra italiana Federica Barzaghi, do Hospital São Rafael, de Milão, que coordenou o estudo internacional. “Uma avaliação dos resultados e uma comparação entre os dois tipos de tratamento, com uma amostra ampla de casos, nunca haviam sido feitas.” A doença resulta de mutações em um gene do cromossomo X, o forkhead box P3 (FOXP3), que impede o funcionamento normal de um grupo específico de células do sangue, os linfócitos T reguladores.

Quando essas células não funcionam direito, instaura-se um desequilíbrio no sistema de defesa do organismo e os linfócitos de outros tipos começam a atacar as células do próprio corpo, traço típico das doenças autoimunes. “O estudo intensivo da Ipex enriquece nosso conhecimento sobre o sistema de defesa do organismo e sobre outras doenças autoimunes, porque permite ver como as células T reguladoras são essenciais para manter a tolerância celular e não atacar as outras células do próprio corpo”, explica a pediatra Magda Carneiro Sampaio, professora da FM-USP e diretora do Instituto da Criança. De acordo com um artigo de 2016 publicado na Nature Reviews Cardiology, a disfunção das células T reguladoras pode favorecer o desenvolvimento de doenças cardiovasculares, como aterosclerose, hipertensão, aneurisma abdominal da aorta, hipertensão arterial pulmonar e infarto do miocárdio.

Na Ipex, que reúne sintomas de várias doenças autoimunes, as falhas das células T reguladoras podem causar, por ordem de frequência, nos casos examinados no estudo: diabetes tipo 1, por causa de danos ao pâncreas; diarreias de longa duração; redução da quantidade de células vermelhas do sangue (causando anemia), de anticorpos (o que leva a reações alérgicas e manchas vermelhas na pele) e de plaquetas (dificultando a coagulação do sangue); inflamação e danos no fígado, nos rins, nas articulações e na glândula tireoide; e queda de cabelo. Outra conclusão da análise dos 96 casos foi que os sintomas predominantes da síndrome independem do tipo de mutação no gene que controla o amadurecimento dos linfócitos T reguladores.

“Os dois tratamentos hoje usados para Ipex ainda precisam melhorar, porque a eficiência de cada um deles chega a no máximo 70%”, afirma Magda. O trabalho coletivo de análise da síndrome também evidenciou que a cura definitiva, segundo Federica, somente poderia ser atingida pela correção da falha genética que causa a doença: “Esperamos que a terapia gênica seja possível em breve para as crianças com os casos mais graves”.

Esta notícia foi publicada na Edição 268 de Junho de 2018 da Revista Pesquisa Fapesp. Todas as informações nela contida são de responsabilidade do autor.
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